Obediência cega de Pazuello gerou milhares de mortes, diz senador na CPI

Alessandro Vieira (Cidadania-SE) usou, nesta quinta (20), o julgamento do coronel Adolf Eichmann, designado para administrar a logística da deportação em massa de judeus para os campos de concentração na Alemanha nazista, em sua arguição ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello na CPI da Covid. Vieira criticou o general por cumprir ordens que teriam levado à morte de brasileiros.

“Trago uma análise de um outro julgamento passado. Se dizia que o cidadão não possuía um histórico ou traços preconceituosos. Ele agiu segundo o que acreditava ser o seu dever, cumprindo ordens superiores e movido por um desejo de ascender em sua carreira profissional, na mais perfeita lógica burocrática. Cumpria ordens sem questioná-las, com o maior zelo e eficiência, sem refletir sobre o bem ou o mal que pudesse causar. Essa análise foi feita sobre Eichmann ao se avaliar sua participação na ‘solução final’ [o extermínio planejado contra os judeus]”, afirmou Vieira.

De acordo com o senador, nos contatos que teve com Pazuello, o então ministro não demonstrou desrespeito à vida, atendendo com celeridade à demanda por respiradores para Sergipe, o que, segundo ele, salvou vidas. Mas teria falhado com relação à execução da política pública. “Tenho a absoluta convicção que não falhou por decisão sua. Não consigo entender que diabo de lealdade o faz acobertar o verdadeiro autor”.

Logo depois, Vieira postou no Twitter: “Pazuello não é um homem mau. É um burocrata que seguiu ordens sem pensar. Um burocrata que nunca entendeu que sua missão era salvar vidas, não obedecer ao chefe de ocasião. Perdemos milhares de vidas por conta desta visão distorcida”. Vale lembrar que o chefe de ocasião e superior hierárquico de Pazuello se chama Jair Bolsonaro (sem partido).

Isso gerou irritação entre os senadores da base de Bolsonaro. O líder do governo Fernando Bezerra (MDB-PE) afirmou que a declaração foi “agressiva e excessiva” por “comparar a atuação do ministro Pazuello com a ‘solução final’ e pediu para que fosse retirada, o que Vieira negou. Marcos Rogério (DEM-RO) chamou a declaração de “teatro”.

Toda comparação que cita a Alemanha nazista, mesmo sem o nome de Hitler, gera polêmica em um debate. Neste caso, não houve uma comparação entre o conteúdo dos crimes de um ou de outro e sim uma crítica ao que Vieira chamou de burocratas insensíveis à realidade. “O Brasil não adota a teoria da obediência cega. Cada funcionário público tem sua responsabilidade. E omissões geraram mortes. Simples assim”, afirmou.

Ao tentar encerrar a discussão, o presidente da CPI, Omaz Aziz (PSD-AM) disse: “Você pode pecar por ação, por omissão ou por obediência. O ‘um manda e outro obedece’ não funciona no setor público e democrático em que vivemos”.

A referência é uma crítica à já icônica declaração do general, em outubro do ano passado. Pazuello havia anunciado a aquisição, pelo governo federal, de 46 milhões de doses da CovonaVac e foi desautorizado publicamente por Bolsonaro, que torpedeou a vacina em meio à sua briga pessoal com o governador João Doria. Depois do mal-estar, visitado pelo presidente, ele fez o subserviente comentário.

No livro “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”, a filósofa Hanna Arendt conta a história da captura do carrasco Eichmann, na Argentina, por agentes israelenses, e seu consequente julgamento. Ela, judia e alemã, chegou a ficar presa em um campo de concentração antes de conseguir fugir para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.

Ao contrário da descrição de um demônio que todos esperavam em seus relatos, originalmente produzidos para a revista New Yorker, o que ela viu foi um funcionário público medíocre e carreirista, que não refletia sobre suas ações e atividades e que repetia clichês.

Ele não possuía história de preconceito aos judeus e não apresentava distúrbios mentais ou caráter doentio. Agia acreditando que, se cumprisse as ordens que lhe fossem dadas, ascenderia na carreira e seria reconhecido entre seus pares por isso. Cumpria ordens com eficiência, sendo um bom burocrata, sem refletir sobre o que suas ações causavam na sociedade.

A autora não quis com o texto, que acabou lhe rendendo ameaças na época, suavizar os resultados da ação de Eichmann, mas entendê-la em um contexto maior. Pazuello também não é o mal encarnado, como lembrou Vieira, mas seguiu ordens sem questionar. Com o país em sua mais importante guerra, ele recebeu orientações que colocaram em risco a saúde de seu próprio povo e resolveu segui-las. Por amor aos benefícios do cargo, por medo de voltar ao anonimato, por qualquer outro motivo que ele mesmo poderia explicar. Mas, infelizmente, o media training que recebeu não permitiria.

Os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich deixaram o cargo quando perceberam que, ao cumprirem as determinações do presidente da República, trairiam o juramento que fizeram como médicos, bateriam de frente com a ciência e levariam pessoas à morte. Pazuello, pelo contrário, aceitou o papel de executor de uma necropolítica reservado a ele por Bolsonaro. A referência de Vieira é, portanto, mais do que pertinente.

Para Arendt, a maldade foi sendo construída aos poucos na Alemanha, por influência de pessoas e diante da falta de crítica, ocupando espaço quando as instituições politicamente permitiram. O vazio de pensamento é o ambiente em que o “mal” se aconchega, abrindo espaço para a banalização da morte e da violência.

É assustador saber que alguém visto como “normal” e “comum” pode ser capaz, nos contextos histórico, político e institucional apropriados, tornar-se o que convencionamos chamar de monstro. Ou seja, os monstros são nossos vizinhos ou podemos ser nós mesmos. Isso não afeta apenas generais, mas quem se alia incondicionalmente a esse posicionamento, defendendo remédios sem eficácia, sabotando isolamento social, criticando a vacina por razões políticas.

Pazuello poderia ter dito ‘não’ às ordens e deixado o ministério, segundo Vieira. Independentemente dos termos da CPI, a História já registrou que ele não quis dizer.